dezembro 22, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 3

 

O navio Andrea C, um dos famosos transatlânticos da época, era relativamente novo, estava no mar havia apenas oito anos em 1956. Ridículamente pequeno para os padrões atuais, com 130 mts de comprimento transportava cerca de 450 passageiros (os navios atuais tem em média três vezes esse comprimento e carregam 6000 passageiros) .A empresa armadora Linea C era italiana e o navio fazia escala em Gênova, no seu trajeto rumo ao Brasil e Argentina. Embora estivéssemos na segunda classe, era uma classe confortável na epoca.

Em Gênova ficamos algumas horas e deu para passear nas imediações do Porto. Minha irmãzinha e eu fomos balançar na enferrujada corrente que cercava o monumento a Cristóvão Colombo, esta se partiu, e foi nossa primeira contribuição ao dano ao patrimônio internacional.

Houve também uma escala na Ilha da Madeira. Papai gastou um pouco do escasso dinheiro que trazia adquirindo algumas belas colchas bordadas a mão e lindas bonecas com carinha de porcelana, que pareciam bebês mesmo.

A escolha do Brasil não foi acidental. Além de haver uma estrutura de recepção aos imigrantes judeus, havia em São Paulo um bem sucedido industrial que era parente de um parente da família de meu pai em Odessa, e a vasta rede de apoio que se dava às vitimas da Grande Guerra o suportaria na sua chegada, como de fato ocorreu.

Ficamos algum tempo morando em uma pensão no Bom Retiro, na Rua dos Italianos, e demonstrando uma insuspeitada vocação comercial, meu pai vendeu com razoável lucro as colchas e as bonecas melhorando seus recursos. Uma das colchas ficou e sobreviveu na família por muitos anos. Era o tempo de São Paulo da garoa e ele foi vender guarda-chuvas para uma empresa do Bom Retiro, Guarda Chuvas Jardim. Há alguns anos fiz uma palestra no Rotary Clube do Bom Retiro e a loja da fábrica ainda existia, 50 anos depois. Até hoje não consigo entender como é que ele fazia para vender sua mercadoria porque ainda não falava portugues. Falava russo, idíshe, hebraico, alemão e um pouco de árabe, mas portugues, neca.

O Sr. Teperman, aquele distante parente do parente de papai sugeriu que mudassemos para o interior, quem sabe para a florescente cidade de Sorocaba, onde encontrariamos melhores condições de vida e de trabalho. Havia um mascate judeu, baixinho, franzino, idoso, Sr. Oyzer, que morava em um quarto de uma pensão próxima a estação da estrada de ferro, que se dispos a vender a sua "clientela" para meu pai. Assim, depois de visitar um por um dos clientes apresentando o novo mascate o Sr. Oyzer passou as cadernetas de clientes para o meu pai e não sei que fim ele levou.

E assim, em Sorocaba, começa uma nova etapa na existência do Sr. Alex Winetzki, este herói de dois mundos, que recomeçava em um país estranho, com uma língua desconhecida, com esposa e dois filhos pequenos, aos 41 anos de idade.

dezembro 21, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 2

 Embora na então Palestina (de Philistia, dos Filisteus) ainda sob o Mandato Britânico, já existissem inúmeras colônias judaicas, desde o século 19, em terrenos adquiridos e pagos por mecenas europeus como os Rothschild e o Barão Hirsch, após a Declaração da Independência de Israel, em 1948, o país se tornou uma colcha de retalhos de imigrantes judeus de todas as partes do mundo.

Era uma multidão procurando um lar definitivo para se estabelecer, a Terra Ancestral dada pelo Senhor a Moisés. Pessoas de todas as idades, de todas as formações, com ou sem qualificações, com idiomas e dietas diversos, algo impossível de dar certo. O país não oferecia nada, nem terra fértil, nem indústrias, nem agricultura extensiva, nem sequer um governo que se entendia entre si. Mas todos unidos no ideal expresso por uma tradicional oração dos judeus, ‘’O ano que vem em Jerusalém”.

Papai foi um destes imigrantes. Apesar de sua formação militar e em matemática, estabeleceu-se em um pequeno aldeamento, ‘kiriat” em hebraico, nos arredores de Hadera, onde nasci, palavra que significa pântano em hebraico, o que descreve bem o local. Lá sustentava a família com uma charrete entregando barras de gelo de casa em casa no país que em seu início tinha pouca energia elétrica e quase nenhuma refrigeração, mas a escassa comida precisava ser conservada. Cuidava ainda de uma pequena roça e muitas noites, com seus vizinhos, fazia a ronda para proteger a aldeia dos constantes ataques dos terroristas árabes, os ‘fedayin”. Aliás, meu pai andou armado a vida inteira e a não ser na guerra, nunca feriu nem matou ninguém, o que mais uma vez prova que o perigo não está no instrumento, mas em quem puxa o gatilho.

Curiosidade. Nasci no Hospital Militar Inglês. Na minha última viagem a Israel fui rever a minha cidade natal, atualmente uma grande cidade que tem inclusive uma usina nuclear, e o local onde vim ao mundo era agora um Hospital de Doenças Mentais. Foi o meu alfa. Que não seja o meu ômega.

Seu maior tesouro era o cavalo, o mais cobiçado troféu de furto dos ‘fedayin’ e na casinha de madeira ele dormia com a janela aberta, com a corda que amarrava o cavalo presa no braço e o revolver na mão, mas nunca houve problemas. Sua reputação de bom atirador não justificava o risco para os larápios. E o país ia sendo construído passo a passo pela força e pela fé de quem retornava à sua Pátria ancestral, apesar da absurda escassez de recursos.

Em 1956, o ditador Nasser fechou o Estreito de Tiran, única saída de Israel para o Mar Vermelho e foram criadas condições para mais uma guerra, que de fato ocorreu pouco depois. Em junho do mesmo ano, farto de guerras, papai decidiu buscar viver em país lindo e pacífico. O Canadá, a Argentina, os EUA e o Brasil estavam proporcionando vistos para que tivesse alguma profissão, e meu pai, devido a sua experiência de artilheiro conhecia engrenagens, ferramentas e parafusos, e tendo declarado a profissão de mecânico conseguimos embarcar para o Brasil do navio Andrea C, da empresa italiana Linea C. As passagens foram pagas com a venda da casinha, dos poucos bens e do cavalo, ah, o bendito cavalo. Na foto abaixo eu com 4 meses no colo dos meus pais.