dezembro 24, 2020

MEM[ORIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 5

 Meu pai não gostava de falar sobre a sua família e muito menos ainda sobre os tempos da guerra. Ao longo de muitos anos fomos arrancando alguma informação, aqui e ali, sobre tais assuntos, especialmente a Alice, com quem ele gostava de conversar quando estava já nos seus últimos anos morando na casa de minha irmã.

Nós não podemos imaginar os horrores da guerra vendo os filmes de cinema e televisão. A dor, o sofrimento e a barbárie excedem a prodigiosa imaginação dos roteiristas. Papai esteve durante cerca de três anos na defesa de Leningrado ante a tentativa das tropas alemãs de destruição da cidade. Quase um milhão e meio de habitantes morreram durante o cerco, milhares deles de fome. Tornaram-se habituais casos de roubo de cartões de racionamento (a ração era 250 grs. de pão por dia) e até mesmo de canibalismo. Nenhum animal sobreviveu, cavalos, cães, gatos, pombos, todos viraram comida. O frio absurdo fazia com a cidade fosse sendo queimada casa por casa para aquecer os sobreviventes, fantasmas esfomeados que vagavam trôpegos, em andrajos, pelas ruas congeladas. E o exército alemão bombardeava continuamente sem alvo determinado, valia destruir qualquer coisa.

Um hospital que tinha dezenas de crianças feridas internadas, muitas em estado grave, foi bombardeado. As crianças sobreviventes encontravam-se em estado desesperador e não havia para aonde levá-las, não havia comida, não havia medicamentos, ninguém queria recebê-las em casa, a temperatura era de cerca de trinta graus negativos e não havia agasalhos. O General Georgy Zhukov, que comandava as tropas soviéticas, confrontado com o problema reuniu seus oficiais, expos o problema e pediu sugestões. A decisão foi matar as crianças para que tivessem uma morte menos dolorosa do que abandonadas ao relento, à fome, ao frio e à dor dos seus ferimentos. Oficiais cumpriram a ordem chorando. Papai se negou a isso, mas assistiu e nunca mais se esqueceu. Foi um fantasma que o acompanhou pelo resto da vida.

Ele não gostava de ver filmes de guerra na TV, dizia que era tudo fantasia. Mas lia os jornais diariamente, principalmente o Estadão e acompanhava os noticiários na TV. Sabia tudo o que acontecia no mundo. Era a época da guerra fria e ele dizia que os ocidentais não entendiam a dissimulada mentalidade soviética, de como eles inventavam mentiras nas quais eles próprios passavam a acreditar e na extrema agressividade e valentia de um povo que descendia dos vikings e se estabeleceu em uma das mais inóspitas regiões do mundo. O nome Rússia, vem do nome do chefe viking Rus, que saqueou Constantinopla no século IV e criou naquele remoto local o que viria a ser este país.

Ele adorava o Brasil e se revoltava quando um brasileiro falava mal do país. E com seu sotaque carregado dizia: - o senhorrrr sabe quando frrrango fica congelado no geladeirrra, como pedrrra. São quatrrrro graus menos. Lá no Russia é trrrrinta graus menos. Senhorrrr vai prá la verrrr se é melhorrr.

Da sua família eu soube apenas que teve irmãos e irmãs e uma pequena foto desbotada de uma gorda matrona que o acompanhou pela vida toda seria de sua mãe, minha avó, Ita ou Ida, eu nunca soube o certo. De quem teria sido meu avô eu nunca ouvi uma palavra sequer.

Como todos os militares era extremamente disciplinador e rigoroso com os filhos, mas sabia ser carinhoso e gentil do seu modo. Muitas vezes minha irmã e eu dormimos com ele coçando as nossas costas. 

dezembro 23, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 4


        Em 1957, quando chegamos a Sorocaba, esta era uma das maiores cidades do Estado de S. Paulo, com cerca de 130.000 habitantes e uma florescente vocação industrial, especialmente na indústria têxtil. Era a capital dos tecidos de linho produzidos principalmente pelas indústrias têxteis Barbero e Metidieri, mas havia muitas outras, a fábrica N.S. da Ponte, que foi a primeira da cidade, também conhecida como Fonseca, a enorme CIANÊ, Cia Nacional de Estamparia, a Fábrica de Tecidos Santa Rosália, a Fábrica Santo Antônio, etc., e indústrias pesadas como a Fábrica de Cimento Santa Helena do grupo Votorantim, a Fábrica de papel Votocel e de maneira pioneira no Brasil havia centenas de faccionistas produzindo peças acabadas em linho e algodão que eram vendidas em lojas de fábrica e por outros revendedores em todo o país. Havia ainda as gigantescas oficinas da Estrada de Ferro Sorocabana, talvez o maior empregador da cidade.         Era uma cidade próspera, com pleno emprego e uma renda bastante razoável na medida que os salários da época compravam proporcionalmente mais do que os atuais.
        Com um pequeno capital emprestado pelo Sr. Teperman, pago integralmente pouco tempo depois, papai comprou a “clientela” e uma pequena quantidade de mercadorias, que na época eram chamadas de “roupas feitas”, uma novidade porque até então grandes redes de lojas de tecidos como as Pernambucanas, Buri e outras menores vendiam os panos que eram costurados em casa para fazer as roupas. A roupa feita libertava a dona de casa para outras atividades e foi muito bem aceita pelas famílias. Meu pai, baixinho, mas atarracado e muito forte, saía a pé carregando duas pequenas malas e visitando sua clientela. As vendas e pagamentos eram anotados em cartões e até onde eu sei, naquele tempo em que a palavra valia mais do que o temor do SPC, ele nunca levou um calote.
        Em pouco tempo o dinheiro ganho deu para comprar uma charrete e um cavalo, e o cavalo voltou às nossas vidas. Morávamos então numa pequena ladeira chamada Rua Afonso Pena, em uma casinha de vila geminada com outras tantas, onde fiz amigos que tenho até hoje. O cavalo era guardado nos altos da Av. Barão de Tatuí, hoje uma das principais artérias da cidade, no local onde se situa mais ou menos o atual shopping no Campolim, que naquele tempo não era mais do que uma vasta pastagem. Papai saia a pé por volta das quatro da manhã para atrelar o cavalo à charrete, chegava em casa por volta das seis para carregar as mercadorias na carroça, levava uma marmita ou um pedaço de pão com salame e queijo embrulhado em um pano de prato e se dirigia aos bairros mais distantes onde aumentou exponencialmente a sua clientela. As pessoas adoravam aquele “russo” simpático e bonachão, risonho e bem-humorado, com forte sotaque e sempre disposto a um café, um trago e uma piada. Muitas vezes, nas minhas férias, saí com ele. Ao escurecer levava o cavalo e a charrete de volta ao pasto, lavava o animal e voltava a pé para casa.
        As pessoas passaram a fazer encomendas de coisas mais dispendiosas, roupa de cama e mesa, ternos e vestidos, enxovais para casamentos e meu pai ia buscá-las em S. Paulo, onde angariou vasto crédito. Ele comprava as mercadorias, o vendedor anotava em um pedaço de papel de embrulho, geralmente rosado e enfiava em um espeto. Um mês depois, ao retornar meu pai pedia a conta, o lojista tirava o papelzinho do espeto e era pago em dinheiro, uma boa soma que meu pai carregava consigo sem preocupações. Vi isso acontecer muitas vezes. Não havia nota fiscal, duplicata, promissória, recibo, nada, a não ser a valiosa palavra empenhada por dois comerciantes honestos.
        Os negócios cresceram e o cavalo e a charrete foram finalmente substituídos por um jipe Land Rover, barulhento e duro, que recordava ao meu pai os veículos utilizados na guerra. Pouco depois, pela recém lançada perua Rural Willys, azul e branca, que ele tirou “O KM” da concessionária e que ficou com ele por muito tempo.