dezembro 26, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 7


        O principal eixo do comércio de Sorocaba na época era a cruz formada pela Rua Barão do Rio Branco e Rua Dr. Braguinha. Numa esquina do cruzamento de ambas ficava a grande loja das Casas Pernambucas, cuja importância no comércio brasileiro era de tal monta que havia uma anedota dizendo que qualquer lugar só era realmente cidade se tivesse prefeitura, igreja, delegacia e uma filial das Pernambucas. Milhares de porteiras de fazendas em todo o país eram pintadas com o nome da loja e o digito verificador do CGC foi ampliado de três para quatro algarismos quando a empresa passou a ter mais de mil lojas.
        Os judeus de Sorocaba concentravam o seu comércio nestas ruas. No início da Barão o belo prédio dos Kaplan, da viúva Rosa Kaplan e seus filhos Marcos, o meu amigo mais antigo e Rubens, artista multitalentoso, falecido precocemente e se tornou um dos miniaturistas mais importantes do país. Eu ganhei uma miniatura dele mas nunca fui buscar e com o seu passamento ficou apenas na intenção. Passei muitas horas na minha infância no amplo apartamento que ficava sobre a loja. Ao lado a Loja Modas Rio Branco de Abrão e Bertha Ofenhejm e suas lindas filhas, Dora, que se tornou advogada e escritora de sucesso, Miriam, que estudou odontologia mas que fez carreira como muito bem-sucedida empresária e Sara, historiadora, de quem tenho poucas notícias.
        Um pouco abaixo do lado oposto, um prédio de três ou quatro andares de Salomão Zitron, um dos líderes da comunidade, cujo filho se tornou um renomado médico. Na Braguinha havia a loja de papai, a dos Mitelmão e seus filhos Sami e os gêmeos. Ao lado a loja do teatrólogo Werner Rothschild, que elevou o nível do teatro em Sorocaba. Pouco abaixo a Casa Couraça dos Kann e dos meninos Eliezer e Zevi. Próximo da ponte havia a loja dos Pinski, de Isaac e Jaime, que se tornou importante historiador e editor. Havia ainda o elegantíssimo médico Dr. Tabacow, que não frequentava a sinagoga, mas atendia a comunidade em domicílio. Havia ainda outras famílias como a do Dr. Saul Gun, cujo filho Luís Gustavo salvou a minha vida diagnosticando e operando um câncer no rim e algumas que vinham da cidade de Itu. As festas na sinagoga eram frequentes, alegres e cheias de comida deliciosa.
        Aos 70 anos minha memória já anda funcionando aos trancos, como um carro com motor cansado. Perdi muitos detalhes daqueles tempos e se algum leitor, meu contemporâneo, puder me auxiliar corrigindo minhas lembranças ou fornecendo maiores detalhes ficarei muito agradecido.
        Toda a vida da comunidade girava em torno da pequena e estreita sinagoga, que ficava em uma travessinha, Rua D. Pedro II, que sai defronte à antiga Prefeitura, atual Teatro Municipal, e termina na própria Dr. Braguinha. Hoje creio que ela não existe mais, mas apenas como curiosidade conto uma história que ouvi do próprio participante, Marcos Kaplan, que era há alguns anos o presidente da Sinagoga. O telhado desgastado pelo tempo do velho prédio havia caído, e o orçamento para a reparação ficava em trinta mil reais. Marcos tirou diversas fotos do estrago e foi procurar o bilionário mecenas Samuel Klein em S. Caetano do Sul, o dono das Casas Bahia. Apresentou-se, exibiu as fotos e pediu a ajuda possível. Klein disse à secretaria: - traga trinta mil em um envelope. Enquanto isso acontecia Marcos perguntou: - O senhor quer um recibo? A resposta foi: - Se eu precisar um recibo da sinagoga eu não dou dinheiro algum. Ao abrir o envelope ele continha trinta mil dólares. Marcos chamou a atenção para o engano, e a resposta foi: - Tudo certo. O senhor vai embora e arruma o prédio. Meu falecido cunhado Horácio Grobman me contou outras histórias sobre a generosidade de Samuel Klein.
        O comércio na cidade crescia de forma extraordinária e meu pai foi muito bem, o que lhe permitiu adquiriu um sobrado na Rua Humaitá, em região nobre da cidade, onde tivemos vizinhos ilustres como o Dr. Luís Garcia Duarte, medico renomado e governador do Rotary e seu filhos João Luís, que se tornaria médico também e Sandra, a menina mais bela da redondeza, que todos sonhávamos namorar. Éramos vizinhos também do Manoel Beldi Castanho, que se tornaria o dono do melhor SPA do Brasil, e os Cacace, Fábio, restaurador, artista plástico e músico, José Cláudio, Danilo e Regina que se tornaram meio que extensão de minha família. Bem próximo morava a família de Leila e Benedito Puglia Camargo, e seus filhos Lélia e Celso, uma das famílias que mais amei na vida. Como eu já disse acima, a memória de tantas outras pessoas tornou-se fugaz.        
        Papai comprou um Opala azul bebê novo em 1968, ano do seu lançamento. Era lindo e foi o carro no qual aprendi a dirigir à custa de derrubar o muro do vizinho da frente. Era o carro mais luxuoso da rua o que mostra a evolução do imigrante que 20 anos antes havia chegado com as mãos abanando e recomeçado a sua vida como camelô. (Na foto a casa da Rua Humaitá)

dezembro 25, 2020

MEMORIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 6

 

Minha mãe Irena era filha de criação de uma família de fazendeiros da aristocracia húngara. Na terrível pobreza dos anos depois da Primeira Guerra Mundial, no destruído e desmembrado Império Austro Húngaro só havia dois tipos de cidadãos, aqueles que possuíam terras e os que trabalhavam na terra e lutavam arduamente para apenas sobreviver. Uma filha inesperada para quem já sustentava família era um ônus insuportável e a menina foi dada para o idoso casal fazendeiro criar. Era a alegria da casa e foi criada como uma princesinha, até a sombria época da Segunda Grande Guerra, quando os pais de criação faleceram, a fazenda foi tomada e a menina expulsa para se virar como pudesse. Ela tinha pouco mais de treze anos.

A saga dos anos passados dormindo aonde dava e comendo aquilo no que pudesse botar a mão são suficientes para outra história. Mas um dia, por uma destruída estação de estrada de ferro na Hungria passava uma tropa russa a caminho da Alemanha, e a garota, então com dezesseis para dezessete anos pediu comida a um garboso capitão. Ficaram juntos pelo resto da vida. Era 1944 e os soviéticos por um lado, a partir da Europa Oriental e os aliados por outro, a partir da França, avançavam fechando o inimigo como os braços de uma tesoura, rumo à Alemanha, que a esta altura já estava desarticulada, apenas recuando e se defendendo, mas ainda lhe restavam bons combatentes dando muito trabalho às tropas que avançavam. E já bem próximo da Alemanha, quase ao final do conflito, papai foi ferido por um estilhaço de granada na perna esquerda, que lhe deixou profundas cicatrizes. Ele foi tratado em um hospital em solo germânico, e minha mãe também foi internada no mesmo hospital para ser tratada por desnutrição.

Estando ambos recuperados tomaram consciência que a Alemanha não era um bom lugar para se viver, especialmente para um militar russo e judeu. Voltar para a URSS era uma opçáo ainda pior.

Paris era ainda a capital cultural do mundo. A ocupação da França produziu o roubo de milhares de obras de arte que desfalcaram os tesouros do país, mas a consciência dos comandantes da ocupação alemã preservou a cidade- ícone de destruição ou de bombardeios e a Cidade Luz rapidamente atraiu milhares de pessoas querendo refazer sua vida. Como já contei, papai foi trabalhar como auxiliar de cozinha em um restaurante russo e nunca mais esqueceu de como fazer deliciosos “borscht” a sopa de beterraba com creme de leite que é a marca registrada da culinária da Ucrânia e “pirozhki”, o bolinho assado de repolho, uma delícia, entre muitos outros pratos. Ele cozinhava muito bem,

Mamãe foi trabalhar em um “atelier” de costura e rapidamente retomou os modos e a elegância com que havia sido criada. E daí para a frente, pelo resto da vida, (e até hoje, aos 91 anos), ela não andava, mas desfilava, com luvas, chapéus e as roupas que ela mesmo fazia ou reformava. Na Sorocaba dos anos 60 e 70 era um espetáculo que os vizinhos e conhecidos gostavam de admirar, ver a Dona Irena, garbosa e linda como uma princesa, indo comprar pão na padaria.

A cidade de Sorocaba crescia de maneira acelerada. O censo de 1970 lista a cidade em 9º lugar no Estado de SP, com pouco mais de 175.000 habitantes. E os negócios de meu pai cresceram também. Ele alugou um sobrado do Eng. Wilson Kalil na Rua Dr. Braguinha, uma das principais artérias comerciais da cidade, onde montou a loja Modas Braguinha, e fomos morar no andar de cima do sobrado. Mas a despeito de possuir agora um comércio, do qual a minha mãe ficou encarregada, nunca deixou de trabalhar, agora com a Rural Willys lotada de mercadorias, vendendo de porta em porta. Dobrava o expediente quando voltava para a loja para lançar as vendas, fazer o caixa, preparar as comprar e separar as mercadorias que levaria no seguinte para a Rural.