dezembro 28, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 9

 

Havia ainda outras famílias judias em Sorocaba. Os pais dos irmãos Epelman, Sr. Samuel e D. Fanny, que também tinham comércio na Rua Barão do Rio Branco, os Crochik, na mesma rua, o engenheiro têxtil da Companhia Nacional de Estamparia Isaac Lederman que construiu umas das casas mais bonitas da cidade em Santa Rosalia vendida depois ao industrial Alfredo Metidieri e talvez outros me fujam da memória. Com a ajuda dos leitores tentarei preencher estas lacunas. Existe um ditado iídiche que diz que onde há um judeu há uma forte opinião, onde há dois judeus há duas fortes opiniões opostas e onde há três judeus há confusão. Apesar da colônia ser pequena havia grupinhos e alguns deles não se falavam, a não ser nas festas da sinagoga quando eram obrigados a conviver. Papai circulava com desenvoltura por todos os grupos por várias razões. A primeira era o seu temperamento bonachão. Rigoroso e disciplinador em casa, quando na rua era simpático, alegre e festeiro. Muitos anos depois descobrimos que era bipolar, naquele tempo se chamava psicose maníaco-depressiva, o que criou problemas em sua velhice. O outro é o fato que era “russiche” e vou explicar no próximo parágrafo. E finalmente porque era ex-combatente, e isso gerava uma aura de profundo respeito por parte da colônia.

Existem dois principais grupos de judeus no mundo, os “ashkenazin”, que são os da Europa Oriental e da Ásia e os “sefaradim”, da Península Ibérica e do norte da África. O segundo grupo é que foi a principal vítima da Inquisição. O hebraico era uma língua litúrgica, somente utilizada nos ritos religiosas. Apenas depois da formação de Israel passou a ser um idioma comum. O primeiro grupo se comunicava em iídiche, o segundo em ladino. Embora sejam os mesmos livros sagrados existem pequenas diferenças nos rituais de ambos os grupos e até hoje eles têm sinagogas separadas. Dentro dos grupos existem subgrupos. Os “ashkenazin” têm os “russiche”, os “poiliche” e outros (da Rússia, da Polônia etc.). Por ser a Rússia o principal país da extinta URSS, os descendentes de russos mereciam uma avaliação especial, mais ou menos como os ridículos juízos de valor que nós mesmos fazemos entre os nordestinos e os cariocas.

Ouvi em alguma ocasião um dito atribuído ao General Douglas Mc Arthur de que o alimento da coragem é o medo e que por esta razão os soldados metidos naquele inferno da guerra dão mostras de coragem absurda. Não sei se o dito é mesmo dele e ignoro se o fato é verdade, mas certamente se aplica a papai cuja coragem era tamanha que se poderia confundir a valentia com temeridade. Não somente a coragem física, uma vez que soldados são treinados para isso, mas a audácia mental de quem joga para ganhar, sem receio de vir a perder. Um episódio ilustra isso.

Quando meu pai começou a circular em Parada do Alto, Barcelona, Votorantim, Piedade e outros locais vendendo suas roupas o clima em Sorocaba no inverno era muito rigoroso e os clientes passaram a encomendar cobertores. A medida que as encomendas aumentavam ele decidiu ir buscar os cobertores na fonte, em São José dos Campos, na Tecelagem Parahyba, que era a maior fábrica de cobertores do país e a responsável por um famoso jingle publicitário que até hoje todas as pessoas de minha idade sabem de cor. “Já é hora de dormir, não espere mamãe mandar, um bom sono prá você e um alegre despertar”.

Ele foi de trem, era o famoso trem de prata que fazia a linha São Paulo-Rio de Janeiro. Chegou de manhãzinha em S.J. dos Campos e apresentou-se à portaria da enorme fábrica, com seu terrível sotaque, querendo falar com o dono. Claro que não foi recebido. Sentou-se então, contava, na calçada em frente, pensando que em algum momento o dono deveria passar por ali. Papai era simpático e comunicativo e alguém da recepção levou a informação daquele estrangeiro com sotaque esquisito e do que ele estava fazendo e por incrível que pareça, um dos donos, Severo Gomes, que viria a ser um político famoso anos depois, foi até lá para ver a história. Não imagino como foi a conversa, mas conhecendo meu pai ele deve ter dito ao industrial que tinha força para trabalhar e juízo para não fazer besteira. Eram outros tempos. Sem ter que provar nada ele ganhou uma linha de crédito da fábrica e se tornou um dos maiores revendedores de cobertores da região, que ajudou bastante a formar o seu fundo de comércio e o progresso financeiro decorrente disso. Anos depois, ao ver o então ministro Severo Gomes na TV, comentava – foi este o homem que me ajudou sem me conhecer.

Como ele já não está mais entre nós e de qualquer forma a esta altura já não importa mais, há que destacar o assédio que meu pai sofria de suas clientes, encantadas com aquele europeu bonito, de bons modos, gentil e sempre disposto a galanteios. Eu sei que ele fez grande sucesso entre as mulheres, mas sempre foi provedor e respeitoso em casa e meus pais acabaram por ter mais dois filhos, Arkádio César, 15 anos mais jovem do que eu, e Raquel, 18 anos mais jovem, o que faz supor que papai sempre esteve em boa forma.

Sentindo o crescimento e o progresso da cidade e do estado de São Paulo de maneira geral, ele passou a investir em imóveis. Comprou dois apartamentos que mandou emendar em um só em frente ao Parque Trianon, na Alameda Casa Branca, uma travessa da Avenida Paulista, comprou um apartamento de frente para o mar em Santos, no Embaré, onde eu, garoto, tive a oportunidade de brincar uma bolinha na praia com os jogadores do ataque do Santos, Dorval, Coutinho, Mengalvio, Pelé e Pepe. Naquele tempo os jogadores de futebol não usavam brinco e nem tatuagens, não tinham “frescuras” e ficavam na praia batendo bola como qualquer mortal. Comprou ainda uma casa bem maior em uma esquina da Rua Gustavo Teixeira, em frente ao Colégio Salesiano para onde a família se mudou. Foi a nossa última residência em Sorocaba. Papai havia adquirido um enorme terreno em Itu, em uma área elevada atrás da rodoviária daquela cidade e lá construiu a mansão com que sempre sonhou. Meus irmãos Arkádio e Raquel foram criados em Itu. Ele foi estudar e morar na África do Sul, passou cinco anos no Egito e é um diretor de arte publicitário com dezenas de prêmios. Rachel mora em Israel

 

dezembro 27, 2020

MEMÓRIAS ESPARSAS DE SOROCABA - 8


        Aos 53 anos, em 2003, compulsoriamente aposentado por um câncer renal, eu me tornei escritor. Escrevi 7 livros e o primeiro deles, O caminho da felicidade, terá publicada a sua décima edição ainda neste mês de janeiro. As preciosas lições recebidas na Folha Popular, no Cruzeiro do Sul e em outras publicações nas quais tive a honra de escrever, os ensinamentos de Zé Caetano Graziozi, Sergio (Pinga) Coelho de Oliveira, Geraldo Bonadio, Guyma, Irany Caovilla, Nello Gandara e outros tantos e o rigor do Prof. Benedito Cleto na escola me trouxeram uma preciosa lição, os textos têm vida própria e uma vez liberados percorrem novos e inesperados caminhos, alterando muitas vezes a intenção inicial do autor.         Foi o que aconteceu com estas memórias. A ideia era contar a em poucas linhas os fatos mais significativos da história de papai mas sem que eu percebesse acabou-se tornando um resumo de fatos da história de Sorocaba naqueles anos dourados das décadas de 60 e 70.
        Em 1900 um físico alemão chamado Max Plank descobriu que a energia carregada por um átomo não flui de modo regular como o escorrer da água de uma torneira, mas sim aos saltos, de maneira aleatória, como quando a gente enche a mão com castanhas de caju de um pote. Porque este tipo de contagem se chama ‘quantum’ em latim (raiz etimológica de quantidade), e o plural é ‘quanta’, ele deu à ciência que criou o nome de física quântica.
        Memórias são quânticas. Vem e vão como o estouro de fogos de artifício. Um lampejo aqui, outro ali e tentamos coordenar estas lembranças para formar uma história inteligível. Então outras famílias judias vão aparecer aqui na medida em que com a ajuda dos leitores e das lembranças eu possa completar as lembranças.
        Deixei para esta postagem a citação de mais algumas famílias judaicas de atuação expressiva na sociedade sorocabana. O Sr. Bernardo Goldman e seus filhos Adolfo, Walter, Júlio e Moisés que tinham uma loja de brinquedos na Rua XV de Novembro e uma grande vidraçaria na parte baixa da Rua Brigadeiro Tobias, mais ou menos onde funciona o Liceu Pedro II. Eles suportaram financeiramente a sinagoga por muitos anos. Nunca se negaram a ajudar os patrícios necessitados, inclusive o meu pai que conseguiu com eles os recursos para a compra da primeira casa na Rua Afonso Pena, bem pertinho da vidraçaria. Tinham uma valiosa propriedade, um quarteirão, no bairro mais nobre de Campo Grande no MS, e várias vezes eu hospedei Moises (Moishe) em casa quando morava naquela Capital enquanto ele negociava o seu terreno.
        A família Epelman, o bem-apessoado casal Moisés e Genny, e o irmão Idal, eram provavelmente a família judaica mais rica da cidade, proprietários do grande estabelecimento comercial Eletrônica Paulista que funcionou na Rua Monsenhor Soares e em diversos endereços. Moisés e Genny frequentavam a sociedade sorocabana, ele foi até diretor do Sorocaba Clube que era então o reduto da elite, da alta sociedade da cidade. Houve uma grande fofoca no fim dos anos 70 que envolveu o casal e que os sorocabanos mais velhos devem recordar. Hoje em dia o fato seria uma virgula, mas naqueles tempos foi um parágrafo inteiro. Preservo a descrição do acontecido em respeito à família. A empresa foi a falência e que acabou provocando a sua mudança para S. Paulo e depois para Israel. As últimas notícias que tenho de Idal, há mais de uma década, são de um comércio de automóveis na Rua Sete de Setembro.
        E o judeu mais famoso da história da cidade, Salomão Pavlowski, hoje nome de viaduto, proprietário da Radio Vanguarda e um dos repórteres mais célebres do Brasil será objeto de um próximo post.
        Minha irmã Genia ainda é uma mulher muito bonita, mas quando jovem era lindíssima e creio que fez balançar o coração de mais de um jovem sorocabano. E não é exagero meu, tenho certeza que muitos dos leitores irão confirmar essa opinião. Ela puxou a genética de minha mãe, que aos 91 anos ainda é uma linda senhora. Desde a sua chegada à Sorocaba meu pai, apesar das dificuldades iniciais nunca economizou em nossa educação. Comprava todos os livros que desejávamos, desde brochuras até coleções, o que nos tornou, a mim e a minha irmã, fanáticos bibliófilos, pagou todos os cursos que desejávamos fazer. Ambos estudamos piano com a Profa. Mirna, fizemos inglês no Centro Cultural e participamos de tudo quando é curso que a cidade oferecia. Genia fez ballet com a Profa. Janice. Retirei centenas de volumes para leitura do Gabinete de Leitura.
        Ficaram no passado as dificuldades do menino de sete anos que ao ser matriculado no Grupo Escolar Visconde de Porto Seguro mal falava português. Eu falava íidiche e hebraico, russo com papai, húngaro como mamãe, algumas palavras de árabe com os amiguinhos da rua em Israel, com o vocabulário de uma criança de seis anos é obvio, mas português, que língua difícil, meu Senhor. A ‘tia’ Cida, minha primeira professora, e que pena que não me lembro mais do nome dela, entendendo a dificuldade me dava uma atenção especial e me proporcionou a leitura de Monteiro Lobato para crianças. Foi o alicerce de minha educação.             Costumo dizer que a base de tudo que sei e aprendi a partir daí devo à obra desse genial brasileiro, tão pouco cultuado. Já tive a oportunidade de presentear dezenas de coleções da obra de Lobato para crianças e escolas, e outros milhares de livros em ações de Rotary, em respeito a Castro Alves que prega: Oh, bendito o que semeia livros à mão cheia e manda o povo pensar! O livro caindo n’alma, é germe - que faz a palma, é chuva - que faz o mar.