O PROCESSO INICIÁTICO - José Maurício Guimarães

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Nem todos que buscam a Iniciação tornam-se dignos de encontrar o verdadeiro segredo, a Palavra Perdida ou a Pedra Filosofal. Pode parecer muito decepcionante, mas grande parte dos que batem às portas dos Templos, apesar de admitidos permanecem como que "do lado de fora", envolvidos carmicamente apenas com a manutenção financeira das instituições.

Do mesmo modo, nem todos que batem à porta da Justiça recebem o Direito, apesar de as Constituições assegurarem a todos o "suum cuique tribuere", isto é: a cada um o que lhe é devido.

Considero "O Processo" de Franz Kafka o livro mais importante do Século XX (escrito entre 1914 - 1925) e me surpreendo de que essa obra não tenha sido lida por todos que buscam a Iniciação e mesmo o Direito.

Li "O Processo" cinco vezes durante minha vida: a primeira quando eu era acadêmico de Direito na UFMG; depois quando frequentei o primeiro ano da pós-graduação na classe do saudoso Professor Lydio Machado Bandeira de Mello que questionava a obra e nos incitava a ler o Kafka como um desafio à Justiça e à história da inclusão do povo judeu na Europa.

Há uma intrigante alegoria nas páginas finais do livro cujo sentido foi grandemente explorado por Orson Welles no filme baseado no livro ("The Trial", 1962).

Vou narrar essa alegoria com minhas palavras:

No ano 4.921 do calendário hebreu, quingentésimo quinquagésimo quinto ano do calendário islâmico e milésimo octogésimo do calendário indiano, nada aconteceu de relevante nos grandes reinos. Os homens não iniciavam novas guerra ˗ apenas se empenhavam  nas que já existiam. Também não houve tratados de paz. O fato mais importante foi que o imperador Manuel Comnenós I submeteu Jerusalém e Antioquia para que aceitassem o domínio bizantino e sua autoridade.

Naquela época, em Patras, próximo de Sicon e Corinto, havia um Templo Iniciático protegido das indiscrições profanas pela ilusão dos sentidos ˗ o véu de Maia.

Diante daquele Templo ficava um guardião de aspecto amedrontador. Ele estava ali havia anos, vestido com pesado manto, armado de espada e imóvel...

Seu corpo musculoso e pesado, como o de um lavrador, apenas se deslocava alguns passos, poucas vezes a cada ano, acaso percebesse algum ruído entre as pedras do deserto. Ele não comia alimento algum, nem água bebia.

Certa manhã, antes de nascer o sol, um buscador se aproximou cansado, olhou em volta e, ao reconhecer o Templo que procurava, pediu ao guardião que o deixasse entrar.

O guardião ergueu a mão direita levando a outra à espada e respondeu que não poderia abrir os portais do Templo. E pediu ao buscador que aguardasse até que a ocasião propícia lhe fosse apresentada.

O buscador não entendeu a resposta e, aproveitando que o guardião virava o rosto para outro lado, arriscou-se a olhar pelo portal iluminado. E perguntou se poderia permanecer sentado do lado de fora até que chegasse a ocasião propícia.

" - Nada te impede que fiques sentado do lado de fora. Nada é impossível para quem busca, sabe pensar e esperar", respondeu o guardião.

O buscador achou melhor sentar e descansar. Decidiu esperar até que, purificado pelo pensamento ou pelo jejum, recebesse autorização do guardião para entrar. Nos três primeiros dias ele permaneceu em meditação, mas seu pensamento foi ficando agitado. Depois, ele passou a contar as pulgas que conseguia ver no pesado manto do guardião.

Passaram-se longos anos e o buscador olhava ininterruptamente para o guardião que lhe parecia ser o único obstáculo à sua entrada no  Templo. A essa altura ele já conhecia cada pulga e sabia distinguir as que morriam nas novas que iam nascendo. Diante dele, o portal do Templo deixava escapar um pouco da luz interior e o eco distante de música desconhecida...

Por fim, o buscador envelheceu. Sua visão ficou fraca. Ele já não sabia se a luz do dia era a noite. Ainda assim, conseguia distinguir lampejos esmaecidos do clarão inextinguível vinda do portal. Como já não tinha muito tempo de vida, resolveu fazer a pergunta que até então não formulara:

" - Se todos aspiram o conhecimento - disse ele - como se explica que durante todos estes anos ninguém, a não ser eu, apareceu por aqui pedindo para entrar?"

O guarda percebeu que o homem estava perto do fim. Aproximou-se do ouvido do moribundo e disse:

" - Diante deste portal, ninguém!, a não ser você, poderia entrar. Este portal e esta entrada foram destinadas apenas a você. Não precisava pedir permissão, era só empurrar a porta... Eu não sou o guarda deste portal, sou apenas o protetor do Templo para que as feras do deserto não se aproximem. Agora você nem consegue caminhar até a tranca metálica da porta. Vou-me embora, pois minha eternidade termina hoje. Quanto a você, permaneça aqui mesmo".

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