A MODERNA GNOSE - João Anatalino Rodrigues

Os gnósticos modernos

Atualmente um grupo de cientistas, oriundo principalmente da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, cuida de revitalizar o pensamento gnóstico. 

Este grupo, onde pontificam especialmente físicos, astrónomos, psicólogos e teólogos, trabalha com os conceitos gnósticos associando-os aos modernos conhecimentos científicos. 

Assim, os eons passaram a ser holons, grandes subunidades, domínios totalizantes, etc.; os dramas cósmicos, como o de Sofia, os embates entre luz e trevas são jogos cósmicos, teia de relações, etc., simulados nos computadores. 

Também os conceitos trabalhados na grande tradição da Cabala são estudados em conexão com as grandes leis naturais que conformam e formatam  universo físico e regula a ocorrência dos seus fenómenos. 

Assim, as séforas da Árvore da Vida são tomadas como analogias das leis naturais, como o magnetismo, a gravidade, a relatividade, a reciprocidade, etc.

Para estes novos gnósticos, Deus não está presente na história dos povos. 

Esta é uma nova maneira de desenvolver a mesma visão dos antigos filósofos panteístas e principalmente da religião dos Vedas. 

Para estes, Deus está em todos os seres e objetos mas estes não estão nele. 

Quer dizer, todas as coisas no universo contém essência divina, mas nada no mundo da matéria deve ser divinizado nem cultuado como divino.

Todavia, ao admitir a existência de um atributo divino nos seres e objectos, implicitamente os novos gnósticos aceitam que a história universal sofre o influxo da Vontade Divina, pois esta está presente na essência dos seres desde a sua criação.

É evidente que não tem muito sentido hoje pensar que Deus interfere nas acções humanas na forma pensada pelos antigos hebreus, por exemplo, para quem o próprio Senhor lutava as suas batalhas, às vezes abrindo mares para que os seus “eleitos” passassem, enquanto os seus perseguidores se afogavam. 

Pensar assim é particularizar Deus, apossar-se dele como se ele fosse o Senhor de uma única parcela da humanidade e não dela toda. 

Imaginar um Deus capaz de preferências pessoais é humanizá-lo demais e esse erro os gnósticos jamais cometeriam.

Para a moderna Gnose, a história humana é a crónica das acções do homem em busca da felicidade, ou o que ele pensa ser a felicidade. 

Estas ações são motivadas pela informação que todos os seres portam nos seus núcleos primordiais e que desenvolvem por interação. 

Daí cada ser se constituir num holom, movimentando-se em grandes subunidades, buscando a realização de um domínio totalizante. 

E é essa intensa movimentação do ser que cria uma teia de relações, assemelhada a um grande jogo cósmico, que vai formatando o universo. 

Saber como tudo isso se processa, para poder orientar esse jogo, é a função do espírito humano.

Assume-se, dessa maneira, a Gnose, simplesmente como uma necessidade de saber, sem limitar o conhecimento a um domínio restrito à esperança de salvação, isto é, o domínio da religião. 

A Gnose passa a ser um questionamento que busca a resposta para a pergunta que sempre ecoou na mente do homem desde o momento em que foi capaz de reflectir: o que é o universo, de onde veio, para onde vai e porque?

É por isto que a Maçonaria moderna foi buscar na tradição da Gnose uma grande parte dos temas ritualísticos desenvolvidos nos seus graus superiores. 

E isso não é sem razão. 

A Gnose é a única disciplina mental que combina, magistralmente, os caminhos da sensibilidade e da razão, na busca do conhecimento. 

Ela integra, ao mesmo tempo, os métodos da religião e da ciência.

A Gnose busca a revelação, a ciência quer o conhecimento. 

Ambas são condensações de um fenómeno energético que ocorre nos domínios mais subtis do psiquismo humano. 

A revelação pode ocorrer no curso de uma prece, de uma prática ritualística ou de um trabalho no laboratório, na oficina ou outro lugar qualquer onde o pensamento guie as mãos; já o conhecimento científico ocorre como soma de descobertas feitas sistematicamente no decorrer de um processo de observação dos fenómenos. 

O que torna diferentes esses dois caminhos de evolução psíquica é a metodologia. 

Enquanto o cientista observa o fenómeno e descreve o que vê, procurando entender por que ele ocorre daquele modo, o gnóstico procura se colocar no interior do próprio fenómeno, como parte dele, para senti-lo, e dessa forma “ver, por dentro” a sua forma de ocorrência.

A ciência “vê” as coisas pelo lado de fora, a Gnose as “sente” pelo lado de dentro. 

Talvez esteja aí a razão do delírio gnóstico jamais ter sido convenientemente entendido pelos racionalistas, pois nunca foi fácil descrever sentimentos, da mesma forma com que se faz com fenómenos mecânicos. 

... Se duas pessoas que compartilham o mesmo grau cultural e as mesmas referências simbólicas forem convidadas a descrever o processo pelo qual a água de uma chaleira se evapora, é possível que ofereçam uma descrição semelhante, e uma mesma conclusão do porquê isso acontece; porém, se lhes pedirmos que nos descrevam o que sentem em razão desse fenómeno, e os motivos do por que sentem dessa forma, dificilmente encontraremos identidade nas respostas e coincidência nas justificativas... 

Na Arte Real estão presentes os dois caminhos. 

O caminho da espiritualização é aquele proposto pela Gnose. 

Ele se trilha através da prática iniciática, expressa nos rituais, nos símbolos e alegorias desenvolvidos em cada grau. 

Nele se aprende pela sensibilidade. 

O caminho do conhecimento racional é aquele que se condensa na própria proposta da Maçonaria: o aprimoramento do espírito, através do estudo das disciplinas morais que tornam o homem justo nos seus julgamentos e perfeito nas suas atitudes. 

Este conhecimento, que se inscreve no domínio da moral, é obtido pela razão. 

Razão e sensibilidade podem e devem andar juntos. 

É a perfeita integração destes elementos que produz a verdadeira sabedoria.

O psiquismo humano, que é a sua verdadeira “alma”, é um agente do comportamento cósmico. 

É nesta qualidade que ela deve participar do movimento do mundo e não como seu mero observador. 

A alma do estudioso, pela participação, torna-se a sua razão, e nessa condição ela realmente ‘vê” o que acontece no interior das coisas, e essa visão é o verdadeiro “ saber”.

Este método de conhecer o mundo, que é o método gnóstico, psicológico, no dizer de Ouspensky, é um método que integra razão e sensibilidade, ou se quisermos colocar isso de uma maneira mais subtil, é uma forma que mistura o esotérico e exotérico, fundindo os dois domínios num único e grande território de realidades possíveis de serem abarcadas pelo espírito humano. 

Se é verdade que espírito e matéria são uma realidade só, que ambos constituem uma unidade que se constrói mutuamente por interação das suas informações nucleares, então essa visão não é mero delírio metafísico.

Afinal de contas, toda religião tem como objetivo ligar a esfera do humano à esfera do divino. 

Por isso todas elas procuram desenvolver uma visão do mundo, um conhecimento interior que ilumina a alma do crente e o leva a algum tipo de iluminação. 

Nenhuma confissão religiosa, mesmo aquelas não deístas, como o Confucionismo, o Taoísmo, o Budismo etc., que trabalham esses caminhos através do exercício mental ou pela sensibilidade, dispensam esse objetivo final, que é a iluminação salvadora.

Não se deve confundir gnóstico com mágico, como o fez a Igreja medieval. 

Embora muitos gnósticos fossem adeptos do pensamento mágico, o gnosticismo se define pelo exercício do livre pensamento, a recusa de qualquer dogma, o conhecimento deduzido das grandes leis da natureza, ainda que esse conhecimento seja interpretado de maneira religiosa. 

A Gnose cultua o saber pelo saber sem temores ou crenças sobrenaturais. 

Aliás, para os gnósticos modernos, o próprio sobrenatural é apenas uma superação de leis naturais.

Evidentemente, a sua conotação como pensamento mágico é uma consequência natural da própria cultura na qual ela se desenvolveu, cultura essa mais voltada para a ciência do divino do que para as realidades da vida profana. 

O que os modernos gnósticos fazem é exactamente isso: mostrar a Gnose sobre um novo enfoque, agora que a inteligência humana conseguiu se livrar dos seus velhos temores sobrenaturais e pode comprovar, pelos avanços da pesquisa cientifica, que a natureza é, em si mesma, um verdadeiro repertório de milagres.


(João Anatalino Rodrigues, do livro “Conhecendo a Arte Real” – ed. Madras, 2007)

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