“Ninguém tachou de má a caixa de Pandora por lhe ter ficado a esperança no fundo. Em algum lugar há de ela ficar”
(Machado de Assis)
Até então estávamos acostumados com o conceito tradicional de inteligência, no sentido da capacidade de conhecer, compreender e aprender, adaptando-nos às novas realidades. Gradativamente, um conjunto de tecnologias capaz de gerar outras tecnologias, novas metodologias e aplicações chegou ao mercado, com reflexos em todas as áreas, com potencial maior que outras inovações, como a assustadora capacidade de uma máquina apreender e reproduzir competências semelhantes às humanas, como o raciocínio, o planeamento e a criatividade, cujo impacto já enseja discussões sobre a criação de um padrão global de regulação dessa chamada “inteligência artificial”.
Sabe-se desde antanho que a única coisa constante na vida é a mudança. Só que estas estão surgindo em ondas cada vez mais rápidas. Modismos da tecnologia, que é o resultado do conhecimento acumulado, passaram a dominar o noticiário recente, em especial a inteligência artificial generativa (ChatGPT), especulando-se como todas as novidades poderiam afetar o mundo, resvalando para uma ruptura em tarefas até então exclusivas do ser humano. Esta nova fase da computação permitiu a passagem do modo de extração de dados e posterior exame para a etapa generativa, com as conclusões sendo alcançadas de bate-pronto. Por ora, ainda temos preservada a nossa capacidade de escolher, questionar, e de ter um pensamento crítico. Mas, até quando?
Naturalmente, mesmo com tantos festejos envolvendo o potencial para o desenvolvimento social e económico global, a desconfiança foi despertada e perspectivas alarmistas foram criadas. Nova caixa de Pandora teria sido aberta. Estudo da Universidade da Pensilvânia e da OpenAI indica as profissões mais expostas ao avanço da Inteligência Artificial. Reportagem da CNN mostra impacto da IA no futuro do trabalho. Os desafios para os direitos humanos e a ética são enormes e constam de discussão em vários contextos, em especial sobre a questionável neutralidade das tecnologias que estão sendo implantadas e “servem a um propósito político e/ou económico maior que a simples ideia de eficiência e liberdade promovida por quem as cria”.
Num primeiro momento as pesquisas sobre o impacto da IA apontam prognósticos de quais e quantas profissões seriam afetadas e a maior preocupação no sentido de que tais tecnologias pudessem adquirir uma espécie de consciência e os cenários até então somente vistos em obras de ficção científica ameaçando a nossa existência. Ademais, alertas de que a IA acelere a desinformação em ritmo alucinante desperta a necessidade de estudos sobre os sistemas de governança e impactos na segurança e na educação.
A tensão em torno do assunto está atingindo governos mundo afora. União Europeia, EUA e China disputam entre si para dar o cunho de como a IA será regulamentada. Parlamentares da União Europeia estão finalizando processo de aprovação do Regulamento da IA, que estabelece obrigações com base nos seus potenciais riscos e nível de impacto, de forma a garantir a segurança e o respeito dos direitos fundamentais, impulsionando simultaneamente a inovação. No Brasil, encontra-se em tramitação no Senado o Projeto de Lei Nº 2338, de 2023, que dispõe sobre o uso da Inteligência Artificial.
Até bem pouco tempo, o Metaverso, uma mescla de mundo virtual imersivo e real habitado por avatares 3D, com reflexos nas maneiras como pessoas interagem, estudam e trabalham, era visto como uma perspectiva ainda de longo prazo e os avanços nesse segmento de realidade virtual e aumentada por ora está restrita às plataformas de jogos. Empresas arrefeceram o interesse em criar os seus ambientes no Metaverso, mas a tecnologia continua sendo construída. Ensaios no âmbito da Maçonaria já estão sendo modulados numa “Loja Conceito”, conforme apresentado em uma live da GLOMARON, apenas como exercício de futurologia e aprimoramento de técnicas. Nada que possa pautar, por ora, o nosso dia a dia.
No mundo dos negócios, o darwinismo corporativo, ou seja, a capacidade de adaptação a estas mudanças e às novas necessidades dos consumidores passou a constar da ordem do dia como única alternativa de manutenção da competitividade e conceito de valor, com o incremento da aprendizagem, habilidade e expertise das equipes, atualização e utilização dos conhecimentos dentro de uma organização e sintonia fina no processo decisório.
Há um ditado popular que afirma “não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe”, então, conjecturar sobre o futuro é sempre tendencioso, certamente podendo descambar para exageros, mas é inevitável não especular a respeito de possíveis cenários. Há um provérbio árabe que afirma: “aquele que fala sobre o futuro mente mesmo quando diz a verdade”. Entretanto, com os gigantes GAFAM, acrónimo da Web para Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft e assemelhados no comando do mercado digital, as tecnologias disruptivas irão certamente alterar as medidas de segurança e estabelecer maiores controles sociais num cenário orweliano.
É de conhecimento geral que crises demandam mudanças e adiantam o futuro. De uma forma ou de outra, estaremos mais conectados e ao mesmo tempo mais isolados. Hábitos já estão sendo mudados e inúmeros sectores da vida em geral sentem os seus efeitos, notadamente no sistema de ensino que passou a adoptar meios híbridos com incorporação de tecnologia envolvendo instrumentos de conteúdo presencial e digital. Notícia de que a Secretaria de Educação de São Paulo planeia produzir todo o material didático da rede estadual com inteligência artificial já causa acalorados debates.
Atualmente, o trabalho remoto é uma realidade e começa a ser incentivado por uma série de razões práticas expostas pela pandemia da Covid-19. Todos os ramos de atividades hoje trabalham com cenários alternativos. Pelo que podemos especular por ora, o porvir será vivido por trás de uma tela. E por isso fica a pergunta: a realidade será mesmo virtual? Quais os desafios para a Maçonaria frente a estas novas tecnologias e demandas da sociedade?
De plano, o publicitário Nizan Guanaes oferece-nos um aperitivo da resposta sobre o futuro que está acontecendo agora: “Você está preparado para ler o Apocalipse? Aquilo é o futuro. É São João dizendo que da barriga de uma máquina sairá a resposta (Google) e que os homens falarão com as mãos (WhatsApp)”. E dá uma dica:
“O futuro não faz sentido, e não tem jeito de prevê-lo. Só é possível construi-lo”.
Então, para a Maçonaria o desafio do avanço constante das novas tecnologias é o mesmo cenário que se apresenta para a evolução humana, ou seja, o de sempre caminhar para frente. O mundo não vai parar e esperar pelas decisões dos gestores da Ordem ou adaptar-se às suas necessidades. As redes sociais vieram para ficar e as suas ferramentas de comunicação digital, como o uso de aplicativos e demais mecanismos, oferecem o ritmo de todos os processos, tornando-os mais ágeis e efetivos. Mesmo para os governantes, à medida que a economia se torna mais complexa, as adaptações são inevitáveis e inadiáveis.
Antes de continuar elaborando este artigo, não resistimos e pedimos ao ChatGPT, em 14.05.2024, que escrevesse dois parágrafos sobre o futuro da Maçonaria em virtude das novas tecnologias. Eis a resposta:
Com o avanço das novas tecnologias, a Maçonaria está enfrentando um período de adaptação e reinvenção. Embora os princípios fundamentais da fraternidade e da busca pela verdade permaneçam inabaláveis, as ferramentas digitais estão sendo integradas de maneira inovadora. Plataformas online estão facilitando a comunicação entre os membros, permitindo o compartilhamento de conhecimento e experiências de forma mais rápida e abrangente, transcendendo fronteiras geográficas e culturais. Além disso, a utilização de realidade virtual e aumentada está redefinindo as práticas rituais, proporcionando experiências imersivas e enriquecedoras que conectam os membros de maneiras antes inimagináveis.
No entanto, apesar destes avanços tecnológicos, a Maçonaria continua a valorizar a importância do contato humano e da presença física. A tecnologia está sendo incorporada de forma complementar, visando aprimorar, mas não substituir, as tradições e rituais que são a base da fraternidade maçónica. O futuro da Maçonaria, portanto, parece ser uma síntese habilidosa entre o antigo e o novo, onde a sabedoria ancestral se une à inovação moderna para fortalecer ainda mais os laços fraternais e promover o desenvolvimento pessoal e espiritual dos seus membros.
De volta à linha do tempo, num primeiro momento, como consequência da Covid-19, a Maçonaria saiu-se muito bem ao adaptar-se de forma apressada, no que foi possível e onde a cultura era mais receptiva, com a adopção das reuniões por videoconferência, de carácter administrativo ou de estudos e palestras, assegurando a gestão do conhecimento maçónico sem descurar da preservação dos Arcanos da Ordem, como a ritualística que somente dever ser praticada em Loja.
Prevenindo-se de um possível colapso da estrutura de sustentação da Ordem na superação inicial das restrições impostas pela pandemia, a Maçonaria passou a experimentar novos tempos e novas formas de reunião à distância, ensejando uma troca de experiências e de compartilhamento da cultura maçónica numa abrangência até então jamais imaginada. Ainda há resistências a estas novidades.
Em cenário mais crítico, a tecnologia passou a ser um forte aliado na preservação das tradições e fortalecimento da união entre os obreiros. Actualmente, a solução até então “provisória” parece ter caído no gosto geral mesmo com o retorno “normal” das sessões presenciais. Certamente este período será lembrado no futuro como uma nova transição na Maçonaria, pois novos hábitos foram incorporados. Impossível deixar de citar Vítor Hugo (1802-1885): “O futuro têm muitos nomes: para os incapazes o inalcançável, para os medrosos o desconhecido, para os valentes a oportunidade” .
Porém, no quesito funcionamento das Lojas no pós-pandemia, já temos relatos de que muitos irmãos idosos e do grupo de risco não estão retornando, evidenciando-se necessidade de revisão do plano de gestão de cada uma das Lojas, talvez com a realização de reuniões híbridas, consideradas as particularidades e as adaptações necessárias. De longa data, sabe-se que gestão é a solução e a tecnologia não poderá ser desdenhada na administração das Lojas, sabendo-se que daqui a um ano teremos outras ferramentas do tipo hoje inimagináveis.
Outra realidade que passa a ser analisada é aquela ligada ao envelhecimento do quadro de obreiros e possíveis impactos do protagonismo da geração ‘Z’, compreendendo pessoas nascidas a partir de meados dos anos de 1990, e das novas denominações que se seguem, consideradas totalmente digitais, e que demonstram valores profundamente diferentes, com demandas sociais e ambientais específicas e maior capacidade de reinventar a forma como trabalhar e solucionar problemas, comunicar-se e reunir-se, impondo diferentes hábitos de vida e de consumo, com apoio a modelos económicos alternativos e desenvolvimento sustentável.
Cabem aos dirigentes atuais ter em mente que estes jovens encaram a diversidade de raça e de género de uma forma natural e essencial na sociedade e enxergam além do que parece ditar o momento, ensejando, em certas situações, ausência de orientação ideológica clara, resistência a rótulos, certa alienação e distância de religião, partidos políticos, e quem sabe, por desconhecimento, até da Maçonaria. Têm o perfil flexível, adaptável e criatividade como habilidade principal, aliando tecnologia e aprendizagem. Algumas destas posturas vão de encontro ao pensamento do quadro de maçons mais idosos.
Sabendo-se que é neste celeiro de novas cabeças que a Maçonaria deverá depositar as suas esperanças e garimpar os seus futuros obreiros, a questão é: como atrai-los? E ainda, se estamos preparados para recrutá-los e recebê-los nas nossas Oficinas. Este ainda é um desafio a ser vencido antes de encararmos o cenário das novas tecnologias. Precisamos repensar abordagens e estratégias, agir com sabedoria e dar um upgrade na nossa criatividade.
Argumenta-se que na atualidade haveria na Maçonaria um conflito geracional, com o desgastado discurso de que os mais jovens naturalmente rejeitam as tradições e o que é antigo, desejando o novo e a promoção de mudanças, transformações por vezes geradoras de conflitos. Pesquisas no mundo corporativo revelam que o fator idade não é determinante para indicar competência ou a sua falta. Quando bem administrado, o choque de gerações pode ser positivo, notadamente pelo intercâmbio de conhecimentos. Há que se focar no equilíbrio e conciliação, tendo como escopo os princípios fundamentais da Maçonaria.
Ademais, não existe uma geração melhor que outra, sabendo-se que atitudes, mentalidades abertas e flexíveis compõem os requisitos para superação de adversidades. O importante é não se acomodar e ficar atento às inovações. Com a nova geração de Aprendizes e Companheiros, numa espécie de mentoria reversa, do tipo colaborativa, facilita-se sobremaneira o intercâmbio de conhecimentos e percepções. Mais uma vez, tudo depende de gestão e que nos recorda um aforismo de François Rabelais: “conheço muitos que não puderam quando deviam, porque não quiseram quando podiam”. A visão de futuro deverá levar em conta que a geração atual de maçons recebeu um legado deixado por revolucionários. E o que vai ser deixado para as próximas gerações? Não podemos ser os COVEIROS da Maçonaria.
É sempre oportuno destacar o ensinamento de HILL (2014): “Quando você fala de líderes que são bem-sucedidos porque ‘sabem escolher homens’, você pode mais corretamente dizer que eles são bem-sucedidos porque sabem como associar mentes que se harmonizam naturalmente. Saber como escolher pessoas de forma bem-sucedida, para qualquer objetivo definido na vida, é uma habilidade desenvolvida para reconhecer os tipos de pessoas cujas mentes naturalmente se harmonizam”. Este contexto merece uma reflexão mais profunda por parte dos nossos Mestres, pois são eles que recrutam os novos membros e nesses potenciais candidatos já deve ser detectado esse espírito de liderança para que sejam aperfeiçoados na Ordem.
Infelizmente, no momento em que a narrativa atinge o seu clímax e o desfecho torna-se inadiável, tais cogitações caem por terra e tornam-se desimportantes frente a outras situações que faceamos no dia a dia da vida profana, como abalo e o sentimento de solidariedade que tomou conta de todos nós em face da recente catástrofe climática sem precedentes que assolou o estado do Rio Grande do Sul, culminando em milhares de desabrigados e mais de uma centena e meia de mortes, casas, lojas, escritórios, indústrias, hospitais, escolas, vias de acesso, rebanhos, plantações e municípios inteiros completamente destruídos, além de caos nas comunicações, sector eléctrico, fornecimento de água e transporte público. É notório que a sociedade em geral, inclusive outros países e entidades multilaterais de crédito, e os órgãos governamentais estão mobilizados para encaminhar as urgentes soluções para esse megadesastre e a Maçonaria, por intermédio das suas Lojas em todo o país, está direcionando ações de ajuda humanitária, com o indispensável apoio das entidades para-maçónicas.
De facto, um desafio premente e uma realidade inquietante! Entretanto, a maçonaria, como instituição, não pode ficar à margem das inovações tecnológicas, sob pena de acordar do lado de fora de um novo mundo em construção pela digitalização e pela Inteligência Artificial, a nova eletricidade ou fogo que está reestruturando tudo em torno dela. Estabilidade e previsibilidade estão fora de cogitação; o panorama é dinâmico e complexo em todos os sentidos.
“O mais belo futuro que poderia ser oferecido à Franco-Maçonaria seria que ela desaparecesse por não ter mais razão de ser, pois isto significaria, então, dizer que todos os seres humanos responderam sem restrição alguma ao ideal de Fraternidade e de Tolerância, vivendo em ‘Fé, Esperança e Caridade’, e que o Templo simbólico da Humanidade estaria terminado.”
(Michel Cugnet, apud Ferrer-Benimeli, 2007, p.666).
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