dezembro 05, 2025

E “A GENTE?” - Heitor Rodrigues Freire

 


Navegando ainda no campo da gramática, recebi uma sugestão do professor Renato Brito sobre um tema que tem merecido minha atenção, tendo em vista a maneira como vem sendo praticado: o uso corrente da expressão “a gente”.

É o termo que mais se ouve em qualquer discurso moderno. É a gente pra cá, a gente pra lá, a gente faz, etc. 

O professor escreveu: “Creio ser pertinente lembrarmos do termo: ‘a gente’, que, de origem latina, ‘gens’, ‘gentis’ – povo, raça, grupo, um substantivo muito utilizado na idade média em Portugal –, começa a partir dos séculos XVII e XVIII aqui em terras brasileiras a deixar de ser um termo substantivado para ousar status de pronome pessoal, funcionando como primeira pessoa do plural, através do fenômeno linguístico da gramaticalização, o mesmo fenômeno que abraçou o vocábulo ‘você’.

Qual é o ponto? Reforçar o sentido do seu texto que trata entre outras coisas, da relação de poder, hierarquia e submissão na sociedade e o reflexo disso no idioma português. Se de um lado temos ‘você’ a denotar respeito, formalidade e superioridade, por outro lado temos ‘a gente’, ou seja, toda gente, todos os que são inferiores e subalternos ao comando e, talvez, caprichos e vaidades mundanas de ‘você’, que está hierarquicamente acima.

De fato, a língua reflete a cultura social posta, afinal, a ‘última flor do Lácio’ em tempos pretéritos em Roma mostrava a diferença brutal do latim falado por Ovídio e Virgílio e o latim chamado ‘vulgar’, precariamente falado pela plebe nas ruas da ‘URBS AETERNA’”

Isso posto, penso que respeito é fundamental, e para isso não devemos levar nada para o lado pessoal, mantendo o bom nível. 

Falando em primeira pessoa – hoje o que mais se verifica é a expressão “a gente”, levando tudo para o impessoal –, da individualidade, passou-se, sem nenhum critério, para a coletividade, despersonalizando totalmente a fala. 

Apesar de sua impropriedade, é importante destacar que "a gente" é uma locução pronominal, composta pelo artigo definido singular "a" e o substantivo "gente". Apesar de se referir à primeira pessoa do plural (nós), a concordância verbal deve ser feita na terceira pessoa do singular. Por exemplo, o correto é "a gente vai", não "a gente vamos".

A proliferação desse termo no português brasileiro é um fenômeno sociolinguístico que reflete uma mudança na língua falada, na qual a locução pronominal tornou-se o substituto mais comum e informal do pronome pessoal "nós". 

Parece que o que se pretende é criar informalidade e coloquialidade: "a gente" é predominante em contextos informais e na fala cotidiana, enquanto "nós" é geralmente reservado para situações mais formais ou para a norma culta escrita. O seu uso indiscriminado reflete a identidade cultural e a diversidade linguística do Brasil, onde as variações da língua são comuns e influenciadas por fatores geográficos, sociais e temporais.

Penso que esse processo faz parte de uma tendência de simplificação ou mudança natural da língua ao longo do tempo. Pesquisas mostram que a forma "a gente" tem, cada vez mais, ocupado o lugar do pronome "nós" entre os falantes brasileiros.

A análise filosófica do uso crescente de "a gente" pode ser abordada através de várias lentes: filósofos como Ludwig Joseph Johann Wittgenstein, (1889-1951, pensador austríaco naturalizado britânico e um dos principais autores da virada linguística na filosofia do século XX) argumentavam que os problemas filosóficos muitas vezes surgem de mal-entendidos sobre como as palavras são usadas na vida cotidiana. A exemplo desse pensamento, a mudança de "nós" para "a gente" na linguagem ordinária sinaliza uma transformação no uso da língua que merece atenção filosófica, pois o uso da linguagem molda nossa percepção sobre o mundo. A análise focaria em como essa nova forma é usada para transmitir significado em contextos não filosóficos.

O uso de "a gente" pode indicar uma mudança na percepção da identidade coletiva. Enquanto "nós" denota um grupo específico e muitas vezes exige uma concordância mais direta e pessoal; "a gente" pode sugerir uma forma mais genérica, menos definida ou mais fluida de pertencimento a um grupo. Isso levanta questões sobre a natureza da comunidade moderna: estamos nos tornando mais homogêneos, ou a linguagem reflete uma nova forma de solidariedade menos formal?

Em suma, a proliferação de "a gente" é mais do que uma simples mudança gramatical; é um fenômeno linguístico que convida à reflexão filosófica sobre a relação entre o eu e o outro, a natureza da vida em sociedade e a forma como a linguagem captura (ou distorce) a realidade da experiência humana na contemporaneidade, e também é um exemplo claro  de como a língua evolui e se adapta ao uso cotidiano de seus falantes, com a linguagem informal ganhando espaço significativo na comunicação oral no Brasil. 

Apesar de toda essa argumentação a favor, entendo que o uso indiscriminado desse termo contribui para o empobrecimento da língua. Não se trata de purismo, mas de constatação verdadeira, porque a substituição do pronome “nós” enseja à forma como as pessoas vivem a maior parte de suas vidas em um estado de impessoalidade e conformidade, fazendo o que "se faz", pensando o que "se pensa". A popularização do termo "a gente" pode ser vista como uma manifestação linguística dessa existência inautêntica e massificada, onde a responsabilidade individual se dilui na coletividade anônima.

Enfim, assim caminha a humanidade. Sigamos.


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