MAÇONARIA E SECULARISMO - Jean-Philippe Hubsch. Adaptado de tradução feita por José Filardo


O secularismo é um conjunto de princípios legais baseados no primado da liberdade de consciência; não é uma arma contra as religiões, nem uma religião civil. A universalidade da lei comum não deve referir-se a nenhuma das várias religiões para se impor a todos os cidadãos. Uma loja maçónica é um lugar de aceitação da diferença, de pacificação de intercâmbios. Isto porque a Maçonaria considera que o secularismo é um princípio universal de pacificação social.

A oportunidade que nos é oferecida de questionar aqui as ligações entre a Maçonaria e o secularismo é particularmente bem-vinda.

Princípio emblemático da tradição republicana francesa, sacralizado pela Terceira República e considerado “intangível” até 1940, o secularismo é hoje o lugar de um profundo esquecimento e, no momento em que ele é perigosamente desafiado pelos “fanatismos” e intolerâncias, sejam eles culturais, políticos, económicos, religiosos, raciais, não é mais propriamente defendido e a pior das confusões reina em torno da noção…

Às vezes, o secularismo é confiscado a favor de um projeto identitário e usado como uma arma contra o Islão. Outras vezes, e ao contrário, pode dizer-se, ele é reduzido a um simples princípio de tolerância a serviço de um projeto multicultural de organização de designações identitárias. Ele é também apresentado como uma espécie de religião civil – aquela daqueles que não teriam nenhuma religião – quando não é visto como uma mera máquina de guerra contra convicções e sentimentos religiosos!… Cada um à sua maneira, todos estes discursos constituem tantas desnaturações do secularismo republicano.

É verdade que no nosso país a Maçonaria é sempre associada ao secularismo. Com as suas tomadas de posição vigilantes a cada suposta ameaça, ela seria até vista – sem trocadilho – como “guardiã do templo”! …

A inspiração das lojas

Desde os seus primeiros passos, a moderna Maçonaria desenvolve um pensamento universalista.  As Constituições de Anderson – o seu texto fundador – anunciam que ela se pretende tornar o “Centro da União, [permitindo] uma amizade sincera entre pessoas que poderiam ter permanecido a uma distância perpétua”, seja por razões políticas, religiosas ou nacionais.

A loja que trabalha neste “centro da união” é uma comunidade que implementa uma “fraternidade eletiva” em busca do pluralismo social, político e religioso. Ela só pode existir e durar porque é soldada por rituais rigorosos e eficazes.

A Loja Maçónica em trabalho é também um método, uma disciplina que contraria toda a espontaneidade e se opõe a todas as inclinações naturais, para realizar uma mudança de estrutura mental para assegurar a superação de intercâmbios interpessoais em benefício da unidade da loja. É uma contracultura tradicional na qual os Maçons, protegidos pelo segredo dos seus intercâmbios, se tornam tantos “contrabandistas” heterodoxos.

O que esta contracultura propõe é, antes de tudo, o trabalho sobre si mesmo – os Maçons falam do seu “templo interior” que torna possível encontrar a unidade interior, reconciliar-se consigo mesmo, a condição primeira para poder para realmente abrir para os outros que eles aprenderam a ver como irmãos e, ao fazê-lo, trabalhar para a melhoria da humanidade – no “templo da humanidade” – Esta contracultura afirma-se como um continuidade espiritual, uma tomada de consciência da solidariedade universal.

Ela é o lugar de uma certa igualdade, marca de tolerância e de abertura. Em loja, aceitar a diferença do outro, aceitar a sua palavra e a respeitar é, para todo Maçom, um requisito absoluto. Mas a tomada em consideração desta alteridade é feita no âmbito de referências comuns que não podem ser transgredidas.

Com as suas ferramentas tradicionais de pacificação progressiva das relações, a Maçonaria é, portanto, uma espécie de laboratório de sociedade, laboratório do laço social que faz germinar naturalmente o princípio do secularismo.

Embora supervisionadas de perto, as lojas maçónicas foram, na sociedade política muito fechada do século XIX francês, as únicas associações ativas toleradas e, portanto, naturalmente, os lares subterrâneos do essencial da vida intelectual e política do país. É por isto que, desde a capitulação de Sedan, a República surgirá toda armada de lojas. Léon Gambetta, e todos os Jules, Simon, Grévy, Favre e especialmente Ferry, para citar apenas estas eminentes personalidades da primeira geração republicana, todos vieram diretamente das lojas.

A construção republicana do secularismo

A República tem por ambição uma construção permanente do laço cívico além das designações identitárias de cada um, na busca e preservação do que é comum a todos. No final do século XIX e início do século XX, a Maçonaria será participará verdadeiramente dos combates políticos para a construção do secularismo do Estado e as concepções que ela defenderá não serão diferentes daquelas que a República se vai dedicar a implementar.

O secularismo é um conjunto de princípios jurídicos baseados no primado da liberdade de consciência. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de Agosto de 1789, tem a religião por uma “opinião” como qualquer outra (Artigo 1.0), que surge, portanto, exclusivamente da liberdade de cada um. Isto necessariamente decorre da igualdade de todas estas opções espirituais aos olhos da lei e, portanto, a igualdade de todos os cidadãos, independentemente das suas opiniões ou religião. A universalidade da lei comum que não se deve referir a nenhuma das diferentes religiões para se impor ao conjunto dos cidadãos é indispensável.

O secularismo torna-se, assim, um princípio de organização social.  O poder público e a esfera a ele associada, com vistas a constituir, estabelecer e garantir os direitos e liberdades que beneficiarão a universalidade dos cidadãos, deve estar sujeitos a uma reserva absoluta em matéria de opções espirituais.

A esfera privada é a dos indivíduos e das comunidades, livre no respeito a lei.  Cada cidadão devem poder exercer estas liberdades individuais e privadas, que são as liberdades de consciência, de opinião religiosa ou outras – e da expressão, fora do domicilio privado, ao nível do espaço civil aberto a todos, no respeito ao direito comum e à ordem pública.

Ao mesmo tempo, o Estado garante a independência destas duas esferas e da unidade da comunidade política dos cidadãos em torno de valores comuns compartilhados.

Numa sociedade secular, o reconhecimento do direito de cada um construir e expressar a sua diferença é, portanto, sempre concebida num espaço de relacionamento, confronto e diálogo com os outros. Este comportamento representa, obviamente, um ideal difícil de construir e alcançar, que produziu no nosso país um modo de vida que é objeto de um consenso duradouro.

Ninguém precisa conhecer as escolhas filosóficas ou religiosas uns dos outros, elas pertencem-lhes. Ninguém precisa de as conhecer, especialmente o Estado, que se proíbe de os recensear. Aqui, novamente, a religião é entendida como uma escolha individual, uma opinião – que se pode mudar – e não como um pertencimento. O culto público, que é legítimo, é praticado em lugares que lhe são normalmente reservados  e isto traduz-se no nosso país pelo surgir gradual de uma cultura compartilhada da discrição das expressões religiosas na sociedade civil.

É a própria essência da tradição histórica e jurídica francesa que vê nessa discrição compartilhada a melhor maneira de garantir que todos tenham a oportunidade de viver juntos numa convivência serena e pacífica, baseada no respeito aos diferentes pensamentos.

Fundamentalmente, se o secularismo francês respeita todas as opções espirituais, é antes de tudo na medida em que elas são expressões da liberdade de consciência dos cidadãos. Assim, a República estará, sem dúvida, menos preocupada expressamente com o indivíduo cuja afiliação a uma comunidade é adquirida do que com o ateu, o agnóstico ou o crente individualista que rompe com o seu grupo, porque eles estão sozinhos e a sua liberdade precisa da protecção do Estado, que também deve ser capaz de proteger o direito de acreditar e de blasfemar.

Os desafios do presente

A construção republicana define-se pelo seu carácter universalista, do qual o secularismo é uma ferramenta essencial. Atualmente, assistimos a um ressurgir de manifestações de afirmação identitária inspiradas na religião, mas que vão muito além das questões de culto, desafiando abertamente o secularismo e os princípios republicanos. E também observamos que a liberdade de consciência e a igualdade de todos recuam e não são mais garantidas em certos espaços privados.

No exato momento em que, portanto, parece que o nosso secularismo constitucional devia, sem dúvida, ser exercido, além dos serviços públicos, na proteção do espaço social, “um lugar de compartilhamento sob o olhar dos outros”, em face de demandas urgentes de expressão religiosa, percebemos que o secularismo perdeu muito da sua força simbólica. O Estado republicano tem o dever de se envolver na defesa de projetos universalistas diante  ataques comunitaristas de certos grupos de pressão.

Como as lojas sabem fazer, a República deve esforçar-se para criar públicos comuns.  Ela deve saber lutar contra as discriminações com base na igualdade, apresentando o que é comum aos indivíduos e grupos sociais, e não através do reconhecimento identitário, que se fechará como uma armadilha implacável sobre o cidadão e os seus direitos.

Um estado neutro, sensível apenas à liberdade do cidadão individual é um modelo moderno e portador de progresso para o futuro. O seu instrumento fundamental é o secularismo, que por si só é capaz de impregnar um pensamento universalista da diversidade, livre da vulgata culturalista que atualmente se está a espalhar sem restrições alguma no debate político e na Comunicação Social. Ela aparecerá então como um princípio universal de pacificação social.



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